Autor:
Engenheiro Agrônomo Orlando Lisboa de Almeida – CREA 57.589-D SP com
visto do Paraná. orlando_lisboa@terra.com.br (WhatsApp 41 999172552)
1 – Introdução
O Brasil a partir da colonização
europeia vem passando ao longo do tempo por mudanças legais e conceituais em
relação à propriedade e uso da terra, o que é razoável pois a dinâmica da
sociedade no passar dos tempos vai trazendo mudanças culturais e as próprias
leis acabam sendo reflexo da dinâmica do povo.
Nas primeiras décadas de 1500, tempo de
adoção do sistema de sesmarias para a ocupação e exploração do solo no
território brasileiro pelo Império português, já havia algum tipo de preocupação
com o destino que deveria ser dado às terras da nova província de forma que os
resultados estivessem dentro das expectativas do Império.
A opção de Portugal foi pela concessão de
grandes áreas de terras na forma de sesmarias aos seus súditos que teriam meios
de exercerem o domínio das mesmas e que gerariam riqueza, tributos e criassem
meios para que a população ocupasse as áreas dando segurança aos interesses do
Império.
As sesmarias resultaram, como era de se
esperar, em grandes latifúndios que passaram a usar da mão de obra escrava,
principalmente vinda da África. A
escravização dos índios no Brasil ocorreu, mas estes se mostravam menos
ajustados ao regime de trabalho que era imposto por seus detentores. Logo no início do Brasil independente,
ocasião em que a escravidão já vinha declinando no mundo, havia pressão
crescente dos países europeus principalmente, no sentido de que a escravidão
fosse abolida e que as tarefas fossem feitas por trabalhadores livres e
remunerados. José Bonifácio de Andrada e Silva, brasileiro culto que foi
inclusive tutor de Dom Pedro II, era um dos defensores da abolição da
escravidão e isto lhe trouxe muita oposição dos grandes latifundiários que
tinham grande poder econômico e como reflexo, poder político de grande
expressão.
Só em 1850
que uma nova lei já do Brasil Império, independente, veio dar uma nova
visão sobre a propriedade rural.
Veremos que houve mudanças, mas que estas ainda estavam longe de dar uma
formatação que a aproximasse de uma maior justiça social, num país já bastante
injusto na distribuição da riqueza produzida pela Nação.
Nos aos 40 a 60 do século XX já na fase do
Brasil emergente em sua industrialização, havia grande inquietação por conta da
população rural que já era bastante grande e a imensa maioria sem acesso à
terra para cultivar e sustentar as respectivas famílias. Isto num país de dimensões continentais,
onde as terras eram subutilizadas, mas estavam até pela herança das sesmarias,
concentradas nas mãos de latifundiários.
O aumento da população urbana e as demandas de alimentos e matérias
primas para as indústrias acabam por aumentar a pressão para uma distribuição
mais justa da terra a quem nela pretende desenvolver atividade produtiva e
buscar renda para sustentar as respectivas famílias.
Terra concentrada nas mãos de poucos;
baixa produtividade do campo; salários irrisórios no meio rural eram empecilhos
para o crescimento do mercado interno e a alavancagem do setor industrial.
O golpe militar de 1964 tem parte do seu
lastro na forma de confronto com essa luta pela posse da terra, podando as
pretensões dos agricultores que esperavam conseguir a posse da terra para
sobrevivência digna.
O golpe ocorreu mas a inquietação no campo
continuou e uma das consequências foi a
aprovação pelo governo militar do chamado Estatuto da Terra que veio com a promessa de amenizar essa pressão dos agricultores que buscavam acesso à
propriedade rural.
Outro marco nessa trajetória foi o embate
em torno da Constituição de 1988, a
chamada Constituição Cidadã, que trouxe inovações importantes do ponto de vista
legal para que a propriedade passasse
a não ser mais absoluta e que esta tivesse um viés condicional e envolvesse a função social da propriedade nos moldes
vigentes até a atualidade.
Os passos citados acima serão detalhados
no curso deste artigo inclusive fundamentado em material bibliográfico
consultado no transcurso do mesmo.
2 – Objetivo
O presente tem o objetivo de resgatar na
literatura os dados relativos à função social da propriedade ao longo da
história do Brasil desde a colonização até os dias atuais de uma forma
sintética para que tenhamos uma visão melhor do tema que é relevante e ajuda a
esclarecer alguns aspectos da injustiça social que há de longa data em nosso
País.
Quando se fala em propriedade rural ou
urbana nem sempre as pessoas tem uma visão abalizada sobre a ou as formas de
uso da terra. O presente artigo visa
então listar, destacar e relatar em forma cronológica as diferentes facetas do
tema de modo que se consiga ter uma visão do conjunto da obra desde a
colonização até os dias atuais, sempre ancoradas em citações expressas.
3 – Revisão da Literatura sobre o tema da Função Social da Propriedade
A origem das sesmarias
A implementação da concessão de terras no
sistema de Sesmarias pelo Império Português no récem descoberto Brasil começou
em 1534 (1).
“O objetivo da entrega das Sesmarias era
lavrar os terrenos incultos” das terras descobertas. ...”buscavam ainda povoar o novo
território” com a finalidade de gerar
riqueza para Portugal, arrecadar tributos, produzir produtos para exportação e
o povoamento garantiria a segurança e o domínio português nas novas terras.
A Lei das Terras de 1850
“As sesmarias estiveram na origem dos
grandes latifúndios no Brasil. A
distribuição de grandes extensões de terra a um único sesmeiro e a utilização
das terras que não estavam dentro dos limites estipulados pelas Cartas de
Sesmarias contribuíam para a desigual distribuição de terras no Brasil, uma das causas da desigualdade social
ainda vigente no País.” (2)
Segundo Foster (3), ainda sobre a Lei das
Terras, datado de 1850, assinado por Dom Pedro II, “a terra passa a ser
propriedade privada. Afastou os pobres
do acesso à terra e o objetivo era formar grandes plantios para
exportação. Isto causou grande
injustiça social. Possibilitou a
manutenção da concentração de terras no Brasil. Aumentou o poder oligárquico e suas ligações
políticas com o governo imperial.”
Naquela época a cana-de-açúcar era plantada
em larga escala, sempre com mão de obra escrava e isso vinha desde o
descobrimento do Brasil. O advento da
terra passar a ser propriedade privada definia que para se ter acesso a ela teria que ser através da compra, o que afastava os
pobres da possibilidade de um dia ter o seu pedaço de terra para plantio e
sustento da família. A alternativa
era a mão de obra escrava ou o trabalho assalariado precário.
Estatuto da Terra (1964)
No Brasil entre 1947 e 1962 houve grandes
debates sobre a Reforma Agrária no contexto da expansão industrial, do êxodo
rural com reflexos no Congresso Nacional.
“ No período houve 45 projetos de
lei que tramitaram no Congresso na busca de
implantar a Reforma Agrária que
sempre teve enorme resistência dos latifundiários e da elite governante.
A ditadura militar iniciada em 1964 em
parte foi uma reação à demanda e inquietação no campo na busca da Reforma
Agrária. Por outro lado, já no governo
militar de Castello Branco, este acabou admitindo publicamente que a demanda
continuava latente na sociedade e havia o entendimento de que teria que haver um tipo de Reforma Agrária
para diminuir o foco de tensão reinante.
Afinal, um dos motivos que os poderosos, aí incluídos os latifundiários,
viram para apoiar a Ditadura Militar de 1964 foi se contrapor ao governo João Goulart que tinha em seu programa de
governo denominado Reformas de Base, a
Reforma Agrária como um dos itens angulares.
O governo militar logo que tomou o poder
em abril de 1964 decidiu implementar um tipo de Reforma Agrária que fosse
palatável minimamente aos latifundiários e que viesse atender em algum nível os
trabalhadores do campo que tinham anseio e lutavam pela posse da terra para
sobrevivência.
Nesse contexto o governo cria a lei 4.504
de 30-11-1964 a qual passa a ser
chamada de Estatuto da Terra. A tramitação foi bem rápida inclusive porque
o Congresso estava sob intervenção militar e o executivo tinha poder de fato
para implementar suas ações de forma mais expedita. Na mensagem número 33 do Presidente Marechal
Humberto de Alencar Castello Branco ao congresso, o mesmo fala do desequilíbrio no campo e a necessidade de Reforma
Agrária. Eis trecho da
mensagem: “... impondo uma
participação mais ativa do Poder Público na remoção dos obstáculos ao progresso
social da camada assalariada rural.
Representando 52% do contingente demográfico ativo na agricultura, essa
população sem terra tem estado praticamente alijada dos benefícios do nosso
progresso, formando um vazio
sócio-econômico, tremendamente mais sério que os nossos vazios
demográficos”. (4)
Os representantes dos latifundiários
acenavam e discursavam no Congresso Nacional contra essa medida do governo e chegaram a acusa-lo de traidor da causa da
“revolução de 1964”. Como
contraponto os latifundiários costumavam dizer que havia muita gente e que essa
gente teria que ir colonizar áreas novas, mantendo intocáveis os latifúndios já
dotados de infraestrutura pública como estradas, ferrovias, portos, etc. Colonizar novas áreas na verdade custaria
grandes investimentos do governo e os recursos sempre foram carentes para um país
novo e de dimensões continentais.
O mote da Ditadura Militar no Brasil que
se iniciou em 1964 destacava a busca da
Segurança Nacional e o Desenvolvimento do País. A Reforma Agrária entraria no pilar de
desenvolvimento.
A Constituição de 1988 – a Constituição
Cidadã
A nossa chamada Carta Magna de 1988 em seu
artigo 5 diz sobre direitos... “à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade.
Em seu inciso XXII diz:
“É garantido o direito de propriedade”.
Em seu inciso XXIII acrescenta:
“A propriedade atenderá à sua função social.
No artigo
170 da CF1988 na parte da ordem econômica, em seus princípios ...” II – a propriedade privada; III – a função social da propriedade.”
Ainda na mesma há no artigo 182 na parte
que trata de desenvolvimento urbano uma alusão à função social da propriedade
no meio urbano. “... ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar dos seus
habitantes”...
No artigo 186 vem a discriminação mais detalhada da Função Social da Propriedade Rural. “A Função Social é cumprida quando a
propriedade rural atende, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos
em lei, aos seguintes requisitos:
I – Aproveitamento racional e adequado;
II – Utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – Observância das disposições que
regulam as relações de trabalho;
IV – Exploração que favoreça o bem estar
dos proprietários e dos trabalhadores.”
Na prática, há leis que estabelecem a produtividade média das lavouras e criações
de natureza econômica nas diversas regiões do Brasil e então para que uma
propriedade rural grande ou pequena seja considerada
produtiva esta tem que alcançar produtividade média igual ou maior que
o parâmetro oficial. Caso não atinja em
certos períodos em que não houve contratempos climáticos, será considerada improdutiva (ou de baixa produtividade) e estará
passível de desapropriação para efeitos de Reforma Agrária.
Por um lado, a medida que tem por base a
produtividade mínima abaixo da qual a propriedade seria considerada improdutiva
não vem sendo corrigida como deveria
e a norma mais atualizada que se tem é a IN Instrução Normativa do INCRA
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, ligado ao Ministério da
Agricultura e Pecuária. Trata-se da IN nº 11 de 2003.
Comparativo da produtividade mínima
exigida pelo Incra para o estado do Paraná para três culturas bastante
recorrentes neste estado e a comparação com a produtividade média corrente na atualidade (2018).
Cultura
|
Produtiv.mínima
Incra
|
Produtiv.
média usual
|
Mandioca
|
12 t/há
|
24 t/ha
|
Milho
|
1,9 t/há
|
5,5 t/há
|
Soja
|
1,9 t/há
|
3,2 t/ha
|
Nota-se
que os parâmetros do Incra são bem generosos e defasados no tempo para
amparar mesmo as propriedades rurais bastante ineficientes e defender para que
estas fiquem ainda dentro da faixa de produtividade que as mantenha como
produtivas e não atingidas pela desapropriação.
O Estatuto da Cidade e a Função Social do
solo urbano
No ano de 2001 foi promulgada a lei 10.257/2001 que passou a ser
chamada de Estatuto da Cidade por
tratar de temas relativos ao ordenamento do meio urbano e no qual se insere o
conceito de função social da propriedade evitando-se dentro do possível a
especulação imobiliária.
Um
resumo do que o Estatuto da Cidade visa garantir:
“Cidades sustentáveis: direito à solo urbano, moradia,
saneamento ambiental, infra-estrutura urbana, transporte e serviços públicos,
trabalho e lazer.
·
Gestão
democrática: participação direta da população na formulação e execução de ações
de desenvolvimento urbano.
·
Cooperação
entre governos e sociedade em atendimento ao interesse social.
·
Integração
entre as atividades urbanas e rurais.
·
Evitar e
corrigir os efeitos negativos do crescimento urbano.
·
Ordenação
de controle do uso do solo.
·
Padrões
de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com a
sustentabilidade ambiental, social e econômica.
·
Justa
distribuição dos benefícios e ônus do processo de urbanização.
·
Adequar a
política econômica, tributária e financeira de modo a privilegiar o bem-estar
geral e a fruição pelos diferentes segmentos sociais.
·
Valorizar
o meio ambiente natural, patrimônio cultural, histórico, artístico,
paisagístico e arqueológico.
·
Regularização
fundiária e urbanização de áreas ocupadas.
·
Simplificar
leis de parcelamento e uso do solo e normas edilícias para reduzir custos e
aumentar oferta de habitações.
·
Isonomia
para agentes públicos e privados em ações de interesse social.
IPTU progressivo no tempo
Usado no descumprimento do parcelamento, edificação
ou uso compulsórios.
Imposto cobrado no prazo máximo de 5 anos, com
parcelas anuais majoradas de modo sucessivo. Desde que:
·
o valor
seja fixado em lei municipal,
·
não
exceda 2 vezes o valor do ano anterior,
·
seja
respeitada a alíquota máxima de 15% do
valor do imóvel.
Após
cinco anos deve ser cobrada a alíquota máxima até resolução do problema.
Desapropriação com pagamento em títulos
Usado no descumprimento do parcelamento, edificação
ou uso compulsórios após os 5 anos do IPTU progressivo no tempo.
Os títulos da dívida pública aprovados pelo Senado
Federal serão resgatados em até dez anos, com prestações anuais
iguais, assegurados o valor real da indenização e juros legais de
6% ao ano.
Valor real da indenização: valor da base de cálculo do
IPTU, descontado o montante de
benfeitorias públicas no bairro, e sem expectativas de ganhos, lucros
cessantes e juros compensatórios.
O Município terá o prazo máximo de 5 anos para
adequar o imóvel desapropriado, podendo passar a obrigação por meio de
alienação ou concessão à terceiros com devido procedimento licitatório”
O Código Civil Brasileiro e a Função Social
da Propriedade
O
referido código vigente é representado pela Lei número 10.406 de 10-01-2002.
Dentre uma gama de assuntos tratados no mesmo, no Título III que trata
da Propriedade na Seção I Disposições Preliminares já no artigo 1.228 diz:
“O
proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de
reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1º O
direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades
econômicas e sociais de modo
que sejam preservados, de conformidade com o
estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o
equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a
poluição do ar e das águas.”
No mesmo
artigo em seu § 3º consta:
“O
proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por
necessidade ou de utilidade pública ou interesse
social, bem como no de requisição, em caso de perigo iminente”.
Conclusão
No que
se refere ao meio urbano parece mais comum as pessoas terem uma idéia de que
possuir um ou mais imóveis urbanos com ou sem benfeitorias estará sempre
sujeito a certas regras como pagar os impostos e taxas em dia como IPTU, taxa de
limpeza pública, etc. Ao construir, se
tem idéia de que há regulamentos para que a obra esteja em conformidade com as
normas vigentes.
Quanto à
propriedade rural ao que parece não há uma visão clara da sociedade
sobre a importância e mesmo da existência de certos regramentos que buscam
resguardar a chamada função social das propriedades para uma convivência mais
razoável da sociedade. Busca se que a
propriedade seja protegida para que o pacto social em torno dele seja adequado,
mas que não se perca de vista as demandas das diferentes camadas da
sociedade. Quanto mais produtivo e
justo seja o ambiente, haverá mais produção, mais produtividade, mais renda e
mais justiça social e a cidadania fica mais plena, dando mais estabilidade à
Nação.
Bibliografia
1
SILVA, José Bonifácio de Andrada e –
José Bonifácio de Andrada e Silva – Projetos para o Brasil – Editora Companhia
das Letras – Publifolha FSP. – 1ª edição – sp – ano 2000 – 212 p
2 PINTO, Tales dos Santos. O que é Sesmaria – Revista Brasil Escola – no
site:
3 FORSTER, Germano de
Rezende. História do Brasil Imperial
Editora Manole citado no site abaixo:
4 SALIS,
Carmen Lucia Gomes de. Tese de
Doutorado – Estatuto da Terra
Defesa na UNESP/Assis- SP. Publicada no site da UEL Universidade
Estadual de Londrina www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/nweFile/19040/14654
5 BRASIL -
Constituição da República Federativa do Brasil – 1988
6
BRASIL – Lei do Estatuto da Cidade
7 BRASIL
– Código Civil Brasileiro – Editora Saraiva, 1ª edição; 2ª tiragem, 2017
8 RIOS,
Arthur e Arthur Rios Junior – Manual do Direito Imobiliário – Editora Juruá –
Curitiba – PR, 4ª edição – 2010
9
SCAVONE JR, Luiz Antonio.
Direito Imobiliário – Editora Forense – 8ª edição – RJ – 2014